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Conto de Natal: A Consoada do Chico

Fátima Fonseca, Professora de Línguas, Especialista de Orientação Familiar

Trrrriiiiiiim…!!!
O Chico acordou um tanto assarapantado. Parecia-lhe ter ouvido um toque insistente e repetido na campainha da porta. Olhou para o relógio e viu que já passava das dez da manhã… na véspera ficara até altas horas da noite a acabar uns trabalhos para a Faculdade e acabara por adormecer vestido, em cima da cama, ao raiar da madrugada. Viu a cama do avô já feita e admirou-se. Onde é que ele estaria? Levantou-se, foi até à porta e deparou- se com o avô, enlameado e ensanguentado, o cabelo todo desgrenhado, de braço dado com o vizinho nepalês, da pequena mercearia em frente, e com um saco de plástico na mão.
– Que aconteceu, avô? Está magoado? Que ideia foi essa de ir para a rua sozinho, todo mal agasalhado, com este tempo horrível?

O avô nada respondeu, apenas sorriu, como uma criança apanhada em falta, enquanto o vizinho nepalês explicava em inglês macarrónico, à mistura com algumas palavras em português, que o avô tinha ido comprar umas coisas à sua loja e à saída tropeçara nas pedras das obras do prédio ao lado e caíra. Parecia ter batido com a cabeça, porque sangrava um pouco…Também estivera antes, na loja do chinês, ali à esquina. E o chinês acompanhara-o até à loja do nepalês, procurando protegê-lo e abrigando-o com um guarda-chuva, apesar da ventania.

O Chico agradeceu, fechou a porta, tomou o avô pela mão e levou- o até à casa de banho para lhe lavar as feridas, que pareciam pequenas escoriações superficiais.
– Avô, venha comigo. Sente-se aqui. Vamos lá tratar de si! Que ideia a sua… já lhe disse tantas vezes que só pode sair comigo… e logo num dia de temporal, com chuva e estas rajadas de vento assustadoras, vai para a rua, fazer o quê? Se calhar ainda será melhor ir ao hospital… dói- lhe a cabeça, ou alguma coisa? Não levou nem cachecol, nem sobretudo… olhe para si! Todo encharcado…Tenho de me zangar consigo…

– Não te zangues, Chico! Não é preciso ir ao hospital! Nem pensar…Eu só queria fazer-te uma surpresa, comprar- te um presente de Natal e não podia ir às compras contigo!

– Oh avô, mas não há cá dinheiro para surpresas… nem presentes… e o Natal é só uma treta dos comerciantes para nos fazerem gastar mais…- comentou o neto, irritado, enquanto lhe tratava dos ferimentos e lhe despia as roupas sujas.

– Não fales assim, Chico, que a tua querida avó, se fosse viva, teria um grande desgosto… o Natal é sagrado, não é uma treta! E além disso, eu também precisava de comprar uma coisa no chinês…

– Ó avô, mas eu já tinha combinado que o ia levar hoje ali ao cabeleireiro brasileiro para lhe cortar essa farta cabeleira… nessa altura fazia as compras todas comigo!

– Chico, não quero ir ao brasileiro… aquilo é cabeleireiro de senhoras… quero ir a um barbeiro de homens!

– Está bem, está bem… mostre lá o que tem nesse saco! E deixe-me tirar-lhe essa roupa e vestir- lhe roupa seca…

– Não mostro, não! É uma surpresa para ti, para amanhã à noite, noite de Natal! Para pôr no teu sapato…

O Chico já não disse mais nada. Abraçou o avô, com carinho, tentou secar-lhe o cabelo desgrenhado, vestiu-lhe outra roupa e calçou-lhe umas meias quentes, depois levou-o para a cozinha e foi preparar um chá quente e umas torradas.
Notou que o avô coxeava, dorido, e ficou preocupado… seria melhor leva-lo ao hospital???

Viviam os dois sozinhos, havia já vários anos. Quando a mãe do Chico morrera, inesperadamente de ataque cardíaco, tinha ele 17 anos e estava no 12º  ano…a vida levara uma grande volta… pai e filho eram muito amigos, mas algum tempo depois, o pai do Chico começara a aparecer em casa com diferentes namoradas… que ali permaneciam e o Chico não gostava nada e não se coibia de mostrar ao pai o seu desagrado… à terceira vez porém, sem dizer uma palavra, Chico fizera uma mala, saíra de casa do pai, de manhã cedo, e fora bater à porta do avô, que estava viúvo e que ele ‘adorava’.

Pedira-lhe para ficar a viver lá em casa e o avô recebera-o de braços abertos. Como este vivia num T1 com alguma austeridade, pois só tinha uma pequena pensão de reforma e o Chico não queria pesar-lhe, arranjara um part-time e começara a trabalhar, enquanto ia tirando o curso de Gestão ao mesmo tempo. O pai ainda insistira para ele voltar para casa, mas o Chico recusara, não queria sequer que o pai lhe desse uma ajuda para pagar os estudos e as relações entre os dois tinham esfriado, ao ponto de raramente se falarem.

Enquanto tomavam o pequeno-almoço, o avô explicou ao neto que precisava pedir-lhe um favor: ao fazer o presépio, partira o burro antigo, do tempo da avó, e como sabia que o chinês vendia presépios, tinha ido à loja para comprar um burro novo. Só que ao cair no chão, perdera o burro e já não o conseguira encontrar… era preciso comprar outro… se pudessem voltar lá os dois…

– Ó avô, nem pensar! Dê-me cá o burro antigo, que eu vou colá-lo. Hoje já não há mais saídas à rua para nada…com este tempo…só se o avô se sentir mal, então vamos mesmo ao hospital…

Chico colou o burro velho com cuidado, e foi pô-lo no presépio. Contou ao avô que o problema estava resolvido e o avô sorriu…Ao longo daquele dia e do dia seguinte porém, o avô parecia estranho e mais sonolento que o habitual…Chico notou a diferença. O avô ficou deitado durante todo o dia 24 de dezembro, pouco quis comer e embora sem febre, estava com uma respiração estranha. O avô não queria sequer a luz acesa e o quarto estava às escuras. Chico voltou a insistir com ele para irem ao hospital, mas o avô teimava em não ir.
E o Chico resolveu telefonar ao pai. O pai prontificou-se de imediato a levar o avô ao hospital e passado pouco tempo estava a bater-lhes à porta.
Pai e filho abraçaram-se, como há muito não acontecia. Chico agradeceu ao pai e contou-lhe, em poucas palavras, tudo o que se passara.

Em seguida, os dois entraram no quarto, mas para sua surpresa, estava o avô de pé, com a luz da mesa de cabeceira acesa, e como que a querer esconder alguma coisa num sapato do Chico. Olhou-os surpreendido, e disse-lhes em voz fraca:
-Que alegria ver pai e filho de novo reunidos! Quero abraçar-vos aos dois! É mesmo uma grande Graça neste Natal… o melhor presente que eu podia receber…mas se pensam que me levam agora ao hospital, desenganem- se…Nem pensem que me tiram de casa em noite de Natal! Nós temos de celebrar… e ontem preparei uma pequena ceia antes de sair de casa…já agora, toma lá o teu presente, Chico!

Chico pegou no sapato e lá de dentro, tirou o saco de plástico onde o avô pusera um grande chocolate Toblerone, o presente de que o Chico tanto gostava…
E nessa noite, sentados à mesa da sala, a comer uma fatia de bolo-rei , olhando o presépio, o Chico mostrou o burro ao avô, e ele sorrindo, contente, comentou:
Quer-me parecer que o burro agora colado até zurrou de alegria…talvez seja por estarmos aqui os três reunidos junto do Menino Jesus!

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