Lá fora, não se via uma única luz. Talvez tivesse havido algum problema elétrico na via pública. Chovia a cântaros. Era uma noite de inverno rigoroso.
Isabel esperava por Júlio para lhe dizer o que decidira firmemente: tudo estava terminado entre eles!
O divórcio há muito que estava iminente. Agora, porém, estava decidida e nada mais havia a dizer. As suas vidas estavam irremediavelmente separadas… ninguém podia consertar as ruínas daquele casamento.
Sobre as suas vidas sofridas abatera- se uma noite escura de breu. Agora só restava evitar mais sofrimento aos três filhos, ainda crianças, inocentes testemunhas do fracasso daquela relação…
Enquanto eles dormiam, Isabel esperava, sentada, às escuras, num cadeirão junto à janela da sala. Já nem conseguia chorar.
Na véspera, uma vez mais, Júlio, o marido, chegara a casa, completamente embriagado e acontecera o que se tornara habitual… pontapés na porta do quarto, louça partida, berros, insultos…até que por fim adormecia no meio de restos de comida espalhada no tapete do chão da sala…alguns vizinhos já se tinham queixado… era uma vergonha!
Porém, nem sempre fora assim.
Tinham-se conhecido muito novos, através de amigos, cantavam no coro da paróquia, faziam voluntariado… entendiam-se bem, partilhavam sonhos e projetos! O namoro fora um tempo maravilhoso e tinham decidido casar logo que ambos tinham começado a trabalhar. As famílias aprovavam as escolhas! E eles consideravam-se um casal feliz, naturalmente com seus ‘altos e baixos’, com as suas diferenças e dificuldades, mas os três filhos tinham vindo consolidar uma união que parecia indestrutível… e aos olhos de todos eram uma família normal e feliz.
Tudo começara a mudar, porém, há um ano e tal atrás, quando Júlio fora mudado de função na fábrica de automóveis onde trabalhava, por ter havido redução de pessoal, mudança de direção e sobretudo, por ele não ter sido capaz de se adaptar às novas tecnologias. Convencido de que era um funcionário excelente, fiel à empresa desde a primeira hora, e com paixão pelos automóveis, não aceitara aquela despromoção, nem as novas funções que lhe propunham; pareciam-lhe injustas, claramente desprezíveis e incompatíveis com o seu estatuto social, pelo que se despedira.
Isabel pedira-lhe encarecidamente que aceitasse, até porque prestes a fazer 50 anos não seria fácil encontrar outro trabalho, mas Júlio, com seu orgulho magoado, saíra mesmo.
Queria ‘sair pelo seu pé e de cabeça erguida’, dizia ele.
Alguns amigos e familiares, preocupados, ainda tinham tentado oferecer-lhe outras hipóteses de trabalho, mas Júlio recusara. Esperava sempre algo melhor! Estava convencidíssimo de que iria conseguir um trabalho mais digno e logo começara a enviar o currículo e a responder a anúncios, mas a sua idade e a falta de experiência noutros ramos, aliadas à crise na venda de automóveis, não facilitavam…
A verdade é que o tempo ia passando, e o facto de Isabel ter uma carreira de gestão de sucesso numa grande empresa, saindo de casa, manhã cedo, para garantir o sustento da família, era mais um espinho que Júlio não conseguia enfrentar. E sozinho em casa, todo o dia, já sem grandes esperanças, começara a beber.
Cada vez bebia mais e mais, sem dar conta de como se ia afundando. Isabel tentara convencê-lo a tratar-se, para poder arranjar um trabalho decente, talvez até um negócio por conta própria. Dissera-lhe que aquilo não era vida e era um mau exemplo para os filhos, que já começavam a perceber e a ressentir-se…
’os nossos filhos precisam de ti, Júlio! Mas tens de ser pai…olha bem para ti! assim não pode ser… queres que eles tenham vergonha de ti?’
Júlio parecia querer dar-lhe razão, quando estava sóbrio, prometia até emendar-se e pedir ajuda numa associação conhecida para recuperação de alcoólicos, mas no dia seguinte tudo voltava ao mesmo. Nem a família, nem os amigos, nem o padre que os casara, ninguém parecia conseguir ajudá-lo…
Na véspera, contudo, ainda acontecera pior: Júlio, não só chegara mais uma vez embriagado, como esmurrara o carro e embatera no portão da garagem do prédio, porque viera a conduzir mais uma vez embriagado…
Isabel estava farta e mais que decidida!
Desta vez ia mesmo pedir o divórcio!
Agora tinha ali uma mala já preparada com as roupas dele, para o pôr fora de casa. Não o deixaria entrar!
Naquela noite, porém, Júlio não aparecia. As horas passavam e nada…até que pelas cinco da manhã, dois polícias lhe bateram à porta, trazendo pelo braço, o marido completamente encharcado, de cabeça baixa, mas sóbrio…
Numa ronda pela cidade, tinham-no encontrado parado no meio da linha férrea e achando estranho, tinham-no abordado, desconfiando das suas intenções. Agora traziam-no de volta a casa.
Isabel não conteve a emoção ao ouvir o relato. Abraçou-o de imediato e levou-o para o quarto, depois de agradecer aos polícias, que à saída os olhavam com expressão de pena.
Acendeu a luz da sua mesa de cabeceira e na escuridão do quarto, olhou fixamente para Júlio. Desta vez sem censura.
Mudo e de cabeça baixa, o marido entregou-lhe um envelope molhado que trazia no bolso interior do casaco. Era uma carta para Isabel.
As primeiras linhas já um tanto esborratadas pela água, diziam apenas:
‘Perdoa-me, querida Isabel! Não quero ser mais um empecilho inútil para ti e para os nossos filhos…’
Isabel, pousou a carta, incapaz de continuar a ler, e a chorar abraçou-o, cheia de compaixão; sem dizer uma palavra, começou a tirar lhe a roupa molhada …e embrulhou-o numa toalha de banho. Júlio estava imóvel e chorava também. Isabel abriu a mala que estava à porta, e tirou um pijama para lhe vestir…