A circunstância de os Estados Unidos passarem a ser os fornecedores de gás liquefeito à Ucrânia e de Trump ameaçar aumentar as tarifas sobre as importações europeias, se alguns membros da União Europeia não aceitarem substituir as importações de petróleo russo por petróleo norte-americano, permite perceber a forma como o novo inquilino da Casa Branca concebe o exclusivismo americano. Uma interpretação marcadamente económica e protecionista e que convive bem com a imposição da paz à custa de elevadas perdas territoriais da Ucrânia.
No que concerne à arena global, o ano que agora termina foi marcado não apenas pela manutenção dos conflitos em curso na Ucrânia e no Médio Oriente e pelo derrube de Bashar al-Assad na Síria, mas também pelo regresso ao poder de Donald Trump. Um regresso que, mesmo antes da tomada de posse, já está a ter consequências diretas na Nova Ordem Mundial.
Na verdade, Donald Trump, após a vitória retumbante sobre Kamala Harris – uma prova inequívoca de que o Partido Democrata não soube acautelar a sucessão de Joe Biden – continuou o seu registo habitual de discurso, frequentemente pela própria voz, mas concedendo também palco a algumas das polémicas personalidades que o rodeiam. Um discurso populista assente na oposição entre os verdadeiros americanos e os outros, aqueles que, independentemente da nacionalidade, colocam em causa o supremo interesse americano. Uma lista extensa e que tem nos imigrantes ilegais a primeira vítima, como a promessa de deportação em massa, a iniciar no primeiro dia do mandato, deixa claro.
Uma demonstração de que a versão Trump 2.5. representa apenas uma revisitação, quiçá ainda mais rebuscada, do modelo Trump 1.7. Algo que tinha ficado patente no slogan da sua campanha presidencial: «Make America Great Again». Um desiderato só possível de atingir à custa dos outros e de uma política expansionista.
Daí a proclamação do interesse trumpiano em «adquirir» o canal do Panamá, a Gronelândia e até o vizinho Canadá. Por isso, o regresso à ideia de que a manutenção dos EUA na NATO exigirá mais do que a duplicação das contribuições atuais dos restantes membros. Um rol de medidas a que não escapa a ameaça do aumento das tarifas sobre as importações norte-americanas provenientes da China e da União Europeia.
Se no primeiro mandato a doutrina de Trump nunca correspondeu à designação – «principled realism» – uma vez que os princípios foram sempre substituídos pelos interesses económicos, os sinais são inequívocos de que a tendência se irá acentuar no novo mandato.
À primeira vista, até parece que Trump tem consciência de que, por culpa de Biden e de Obama, a hegemonia norte-americana deixou de corresponder à nova realidade global, mas acredita que, neste segundo mandato, dispõe da capacidade de completar a obra iniciada em 2017, e de promover o regresso à hegemonia global da Terra do Tio Sam. Uma leitura que, malgrado o narcisismo maquiavélico de Trump, talvez não seja a correta.
De facto, uma análise mais profunda da forma como Trump está a lidar com a guerra na Ucrânia e com o expansionismo económico chinês é passível de outra leitura. Em ambas as situações surgem indícios de que Trump tem consciência da existência de um Mundo de Múltiplas Ordens.
Assim, a sua proclamação de que acabaria com a guerra da Ucrânia em 24 horas pode bem ser um indício da estratégia de Trump para lidar com Putin e a Ordem Eurasiana, mas de forma a defender totalmente os interesses dos Estados Unidos, enquanto potência liderante da Ordem Liberal. A circunstância de os Estados Unidos passarem a ser os fornecedores de gás liquefeito à Ucrânia e de Trump ameaçar aumentar as tarifas sobre as importações europeias, se alguns membros da União Europeia não aceitarem substituir as importações de petróleo russo por petróleo norte-americano, permite perceber a forma como o novo inquilino da Casa Branca concebe o exclusivismo americano. Uma interpretação marcadamente económica e protecionista e que convive bem com a imposição da paz à custa de elevadas perdas territoriais da Ucrânia.
Quanto ao expansionismo económico chinês, Trump não tem dúvidas de que Pequim lidera a Ordem da Rota da Seda e, como tal, na conjuntura atual, o passo fundamental é limitar ou controlar o avanço da mesma. Daí o regresso à ideia de que o destino manifesto dos Estados Unidos é a zona do Indo-Pacífico. A região onde estão alguns dos membros da Ordem Liberal e, sobretudo, Taiwan, uma possível moeda de troca entre Washington e Pequim.
Finalmente, importa referir que a queda de Bashar al-Assad na Síria e o protagonismo que a Turquia está a ganhar na zona ajuda a perceber que, por agora, Trump prefere que Erdogan assuma a liderança da Ordem Muçulmana, em detrimento das pretensões da Arábia Saudita sunita e do Irão xiita, até porque Israel tem muito a ganhar com a perda de prestígio do regime instalado em Teerão. Um dado que joga a favor de Trump, depois dos sucessivos malogros da Administração Biden na busca de um cessar-fogo definitivo em Gaza. Afinal, não parece abusivo dizer que, ao contrário do seu aspeto capilar, a estratégia de Trump pode não ser assim tão descabelada.
A exemplo de Alice, que vivia no País das Maravilhas, Trump também criou a sua realidade, mas, no fundo, sabe que o Mundo de Múltiplas Ordens está a completar a sua formação e importa encontrar um ponto de equilíbrio. Por enquanto, um equilíbrio ainda instável, mas que já deixa perceber que serão as periferias a pagar os desmandos e as exigências dos centros decisores.
Uma realidade na qual os votos de Bom Ano representam apenas um mero wishful thinking. A regra da vida habitual!